segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

"Onde começa o espaço exterior?", artigo de José Monserrat Filho

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Onde começa o espaço exterior?

José Monserrat Filho *

“É um paradoxo elaborar normas jurídicas para regular questões do espaço exterior no Subcomitê Jurídico [do Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Exterior – UNCOPUOS], mas ser incapaz de criar um acordo sobre o que significa precisamente 'espaço exterior'.” Representante do Brasil em reunião do UNCOPUOS, em 19761

Se você perguntar onde começa o espaço exterior a um profissional das atividades espaciais, ele com certeza lhe responderá: “Mais ou menos a partir de 100 km da face da Terra.” Dificilmente alguém vai lhe dizer algo diferente. Mas esta é só uma referência prática, criada por pessoas experientes no ramo. A indicação não é obrigatória para os países. A comunidade mundial de nações ainda não logrou elaborar um acordo escrito a respeito.

A questão vem sendo discutida há exatamente 50 anos no Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço (UNCOPUOS, na sigla em inglês), em especial no seu Subcomitê Jurídico.2 E esse meio século de debates ainda não foi suficiente para se chegar a uma solução aceitável para os dois lados da querela: quem é a favor e quem é contra a delimitação do espaço. Nem há perspectivas de se encontrar uma solução consensual proximamente.

O problema é que, como salienta Olavo Bittencourt3, a delimitação vertical da soberania dos Estados “toca questões estratégicas de grande relevância internacional”, pois “a conquista do espaço ultraterrestre se dá amparada em tecnologia dual, capaz de ser usada, como a maior parte das conquistas científicas, para a guerra e para a paz”. Não é isso que fecha as portas de um acordo?

O mais curioso do longevo debate é que as partes divergentes estão condenadas a seguir negociando pela vida afora, até encontrar uma solução consensual ou resolver, também por consenso, retirar o tema da pauta. No UNCOPUOS, impera a regra do consenso, adotada em 1962 por demanda da ex-União Soviética (URSS) numa época em que os Estados Unidos (EUA)  tinham maioria no Comitê e em seus Subcomitês.4 As deliberações passaram a ser tomadas com a aprovação de todos os países membros do Comitê – a começar, claro, pelos EUA e URSS – ou, pelo menos, sem nenhuma rejeição expressa. A regra do consenso foi essencial para a aprovação dos cinco tratados espaciais das Nações Unidas e de quase todas as resoluções da Assembleia Geral.5 Ela continua em pleno vigor, ainda que hoje mais de 60 países exerçam atividades espaciais e assumam diferentes posições no setor. Em 2015, a China apoiou a regra do consenso em especial na preparação da pauta de trabalho do UNCOPUOS e de seus Subcomitês, para promover esforços conjuntos na regulação das novas atividades espaciais.6

Na realidade, o desafio de traçar uma fronteira entre os espaços aérea e exterior surgiu já no primeiro dia da Era Espacial, com o lançamento do primeiro satélite feito pela mão humana, o Sputnik-1, em 4 de outubro de 1957. Onde estaria ele voando, no espaço aéreo ou em outro espaço, até então nunca percorrido por um objeto criado por terráqueos? Como nenhum país protestou contra a invasão de seu espaço aéreo pelo Sputnik-1, deduziu-se, naturalmente, que não era nesse espaço que ele voava, mas em outro espaço mais acima. Conclusão: o Sputnik-1 voava no espaço exterior. Esse termo em inglês – “outer space” – foi rapidamente assimilado tanto pelas instituições oficiais, nacionais e internacionais, quanto pela imprensa e pela opinião pública. Já o primeiro documento da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre assuntos espaciais, a Resolução 1348, de 13 de dezembro de 1958, falava em “outer space”.7 Implicitamente, todos os países reconheciam assim que qualquer artefato feito pela mão humana pode voar no espaço exterior sem a autorização do país subjacente, como é exigido para voos no espaço aéreo, sobre o qual o país subjacente exerce plena soberania – conforme reza a Convenção de Chicago de 1944.8

Mas só em 1967, a questão começou a ser debatida no UNCOPUOS, por proposta da França. Embora com título diferente, o tema entrou na agenda do Subcomitê Jurídico, a quem a Assembleia Geral das Nações Unidas havia solicitado, pela Resolução 2222 (XXI)9 de 19 de dezembro de 1966, “iniciar o estudo da questão da definição do espaço exterior e a utilização do espaço exterior e dos corpos celestes, inclusive as várias implicações nas comunicações espaciais”.

A palavra “delimitação”, no caso, surge apenas em 1972, quando o tópico foi renomeado para “definição e/ou delimitação do espaço exterior...”10, mantendo-se o restante da frase de 1966. Isto certamente refletia o interesse de definir o espaço exterior do ponto de vista de suas fronteiras.

E por que não fixar a fronteira a partir de 100 km de altura? Em 1979, a ex-URSS propôs ao Subcomitê Jurídico o estabelecimento da linha divisória entre os espaços aéreo e exterior na altura de 100-110 km acima do nível do mar.11 A proposta era realista. Baseava-se na convicção de que abaixo dessa faixa nenhum objeto consegue se manter em órbita. Mesmo assim não logrou o consenso indispensável para ser aprovada. Mas ganhou um prêmio invejável: com o tempo, tornou-se referência comum e corrente entre profissionais de diferentes atividades espaciais. Um hábito operacional e pragmático que permanece atuante até nossos dias.

Em 1984, O Subcomitê Jurídico criou um grupo de trabalho (GT) para estudar, em base prioritária, os problemas da definição e delimitação do espaço exterior e elaborar um projeto de princípios a respeito, a ser apresentado aos países membros do órgão. A determinação vinha da Resolução 38/80 da Assembleia Geral das Nações Unidas, adotada em 15 de dezembro de 1983.12 A resolução, ademais, requeria que o projeto de princípios levasse em conta os regimes jurídicos diferentes que ordenam o espaço aérea e o espaço exterior. Ou seja, a resolução já assumia clara posição diante da controvérsia existente.

Vejamos agora alguns argumentos comumente usados contra a definição e delimitação do espaço exterior, expostos pelos Países Baixos e EUA:

1) "O Reino dos Países Baixos, por enquanto, não julga necessário definir espaço exterior ou delimitar os espaços aéreo e exterior, ou seguir outro enfoque para resolver tais problemas. O estado atual das atividades espaciais e da aviação, no Reino e em países vizinhos, não gerou a necessidade de exercer jurisdição sobre os objetos que cruzam o espaço aéreo do Reino a caminho ou voltando do espaço exterior. Tal necessidade poderá surgir no futuro como resultado do desenvolvimento das tecnologias espaciais e da aviação, em particular o desenvolvimento de voos espaciais comerciais privados e do turismo espacial. Poderá, então, ser considerada a questão de saber se é preciso definir o espaço exterior ou delimitar os espaços aéreo e exterior, ou seguir outro enfoque para regular adequadamente tais atividades. Como a natureza exata e as circunstâncias dessas atividades não são conhecidas hoje, o Reino dos Países Baixos não considera necessário identificar e tratar do cenário de sua regulação.” (Declaração ao GT do Subcomitê Jurídico, em 201013.)

2) "Definir e delimitar o espaço exterior não é necessário. Não há questões legais ou práticas surgidas devido à falta de tal definição. Pelo contrário, os regimes jurídicos divergentes em vigor nos espaços aéreo e exterior têm operado bem em suas respectivas esferas. A falta de definição ou delimitação do espaço exterior não tem impedido o desenvolvimento de atividades em qualquer área. Não fomos persuadidos pelas razões expostas para que se efetue a definição ou a delimitação. Por exemplo, alguns delegados apoiam a ideia da definição para seu próprio bem. Mas, sem um problema prático a resolver, empreender tal definição seria exercício arriscado. (...) Outras delegações sugerem que uma definição ou delimitação é necessária de algum modo, para salvaguardar a soberania dos Estados. Sabemos, porém, que nenhuma questão da soberania do Estado será resolvida com a definição de espaço exterior. Mesmo se houvesse algum problema cuja resolução uma definição ou delimitação do espaço exterior ajudaria a resolver, a Subcomissão Jurídico deveria proceder com o devido cuidado. Seja qual for a definição ou a delimitação finalmente acordada, elas seriam, na pior das hipóteses, arbitrárias pela sua natureza, ou, na melhor das hipóteses, limitadas pelo estado atual da tecnologia. Por exemplo, os avanços tecnológicos aumentaram a altura em que os aviões podem sustentar o voo e diminuíram a altura em que o voo orbital de objetos espaciais é possível. Os avanços tecnológicos provavelmente continuarão. Seria perigoso que a Subcomissão Jurídica concordasse com uma linha artificial entre os espaços aéreo e exterior, quando não se pode prever as consequências de tal linha. A Subcomissão Jurídica não deve decidir a questão até que problemas práticos sejam identificados, de modo que uma solução se torne absolutamente necessária." Esta declaração dos EUA14, lida na reunião do Subcomitê Jurídico em abril de 2001, é vista como representativa e válida até hoje.

Eis agora os argumentos que defendem a definição e a delimitação do espaço exterior, apresentados no relatório do UNCOPUOS de 201515:

1) Uma discussão mais aprofundada deste item ajudaria a trazer claridade à implementação do Direito Espacial e do Direito Aeronáutico, levando em conta que o Direito Espacial é o único ramo do Direito Internacional cuja área de aplicação não é limitada nem definida;

2) O progresso científico e tecnológico, a comercialização do espaço, a participação do setor privado, as questões legais emergentes e a crescente utilização do espaço em geral tornam necessário que o Subcomitê Jurídico examine a definição e a delimitação do espaço exterior;

3) A definição e a delimitação do espaço exterior ajudarão a criar um regime legal único para regular o movimento dos objetos aeroespaciais, lançar claridade jurídica à implementação do Direito Espacial e do Direito Aeronáutico e elucidar as questões de soberania e responsabilidade dos Estados, bem como a fronteira entre os espaços exterior e aéreo.

Outros argumentos registrados no projeto de relatório de 201116 do Presidente do Grupo de Trabalho sobre o tema são:

1) É importante definir e delimitar o espaço exterior no nível internacional, pois isso criará certeza na aplicação do Direito Aeronáutico e do Direito Espacial, bem como no reconhecimento da soberania dos Estados sobre seu espaço aéreo.

2) São importantes os debates aprofundados sobre a definição e a delimitação do espaço exterior, mesmo no nível teórico, para se ter certeza sobre os mecanismos em funcionamento, antes que dificuldades reais ocorram.

3) As soluções sobre a definição e a delimitação do espaço exterior podem ser encontradas na lei nacional, que necessariamente não se oporão às fixadas em lei internacional.

4) A definição e a delimitação do espaço exterior também permitem a aplicação efetiva dos princípios da liberdade de uso do espaço e de sua não apropriação (Tratado do Espaço, Arts. II e II).

A Declaração do Brasil17, emitida em 2009, oferece essa argumentação: “A velocidade dos avanços tecnológicos no espaço e pesquisa aeronáutica indicam que, em futuro próximo, será possível desenvolver uma nave com características similares às de um "objeto aeroespacial", que poderia ser definido como objeto capaz de voar e realizar atividades tanto no espaço exterior quanto no espaço aéreo. Tendo isso em conta, objetos aeroespaciais devem ser regulados por lei espacial internacional quando estiverem no espaço exterior e pelas leis aeronáuticas internacionais e nacionais, quando estiverem no espaço aéreo. A principal diferença entre os dois regimes é que no Direito Aeronáutico prevalece o princípio da soberania do Estado, enquanto no Direito Espacial isso não ocorre. Para lidar adequadamente com situações decorrentes do desenvolvimento ou uso de objetos aeroespaciais (por exemplo, atividades no espaço aéreo estrangeira), é necessário que a comunidade internacional tome medidas para estabelecer princípios e parâmetros universalmente aceitos, que levem à definição de fronteiras entre os espaços exterior e aéreo.”

Uma incongruência salta aos olhos: os argumentos a favor são basicamente jurídicos e os contra não são jurídicos. Como afirmar que uma lei é desnecessária se ela vem traçar o limite indispensável entre sistemas legais divergentes, um onde prevalece a soberania dos países e outro onde não há lugar para ela? São dois regimes tão diferentes quanto incompatíveis. Por que, então, desprezar a lei? Porque a ausência da lei “funciona bem”? E por que supor que a existência da lei não funcionaria bem? Desde quando a ordem jurídica, a legalidade estabelecida com base na justiça e no entendimento democrático, impede o desenvolvimento dos países e das pessoas?

O fato é que os planos estratégico-militares, sobretudo de grandes potências, de que fala Olavo Bittencourt, não são feitos necessariamente para cumprir leis ou criar soluções jurídicas de comum acordo com os outros países. Basta ver o que ocorre com a chamada “nova Guerra Fria”.

* Presidente do Grupo de Trabalho sobre Definição e Delimitação do Espaço Exterior, do Subcomitê Jurídico do UNCOPUOS, desde 2005; Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA); Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial; Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA); e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: jose.monserrat.filho@gmail.com.

Referências:

1) Resolution A/AC.105/C.2/7/Add.1, p.9.
2) http://www.unoosa.org/oosa/en/ourwork/copuos/index.html.
3) Bittencourt Neto, Olavo de O., Limite Vertical da Soberania dos Estados: Froneira entre Espaço Aéreo e Ultraterrestre, Tese de Doutorado defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), tendo como orientador o Prof. Paulo Borba Csella em maio de 2011, p. 73. Olavo tornou-se, então, o primeiro doutor em Direito Espacial formado no Brasil.
4) “Nos anos 60, os EUA contavam com maioria de rolo compressor na Assembleia Geral das Nações Unidas, e a maioria de votos no UNCOPUOS e em seus Subcomitês poderia desfavorecer fortemente os soviéticos. Mais tarde, a URSS tornou-se capaz de reunir uma maioria com o apoio do Grupo de Países Não-Alinhados e os EUA começaram a insistir no procedimento de consenso nos anos 80 e 90.” Ver em Perspectives on International Law, Edited by Nandasiri Jasentuliyna and published in United Kingdom by Kluwer Law International, in 1995, pp. 354-356.
5) Ver os tratados e resoluções das Nações Unidas no site www.sbda.org.br em “textos”.
6) http://www.fmprc.gov.cn/ce/cgvienna/eng/hplywks/t1274614.htm.
7) http://www.unoosa.org/pdf/gares/ARES_13_1348E.pdf.
8) http://www.icao.int/publications/Documents/7300_cons.pdf.
9) http://daccess-dds-ny.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/005/25/IMG/NR000525.
pdf?OpenElement
10) www.unoosa.org/pdf/gadocs/A_8720E.pdf.
11) www.unoosa.org/pdf/gadocs/A_34_20E.pdf.
12) http://www.un.org/documents/ga/res/38/a38r080.htm.
13) http://www.unoosa.org/pdf/limited/c2/AC105_C2_2010_CRP10E.pdf.
14) http://www.state.gov/s/l/22718.htm.
15) UN General Assembly Resolution A/70/20 – Report of the Committee on the Peaceful Uses of Outer Space, Fifty-eighth session (10-19 June 2015). http://www.unoosa.org/res/oosadoc/ data/documents/2015/a/a7920_0_html/A_70_20AEVE.pdf.
16) www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/AC.105/C.2/2011/DEF/L.1&Lang=.
17) http://www.unoosa.org/pdf/reports/ac105/AC105_889Add2E.pdf.
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